Denis: o caipira da “Mão Amiga” que desata nós para suceder Rogério Ceni

Aqui é trabalho! O bordão eternizado por Muricy Ramalho bem que poderia ser o título da biografia do principal candidato a herdeiro da camisa 1 do São Paulo. Servente de pedreiro, guia turístico, garçom, entregador de marmita, músico… Denis fez de tudo antes, durante e depois de se tornar jogador, decisão tomada aos 14 anos, quando abriu mão dos shows da banda “Mão Amiga”, nome mais do que sugestivo para quem foi eleito substituto pelo próprio Rogério Ceni.

Era sagrado. Todo sábado, às 4h da tarde, Denis e o pai Miguel iam para a casa do “dono da banda”. Carregavam uma velha perua de instrumentos e aparelhos, tomavam banho e pegavam a estrada saindo de Torrinha, onde moravam, rumo a bailes de terceira idade. A missão da “Mão Amiga” era divertir velhinhos que dançavam até altas horas em cidades do interior paulista ao som do teclado de Denis, da sanfona de seu pai, do violão e da bateria dos amigos Gilberto e Thiago.

Caipira assumido, o goleiro tricolor morre de amores pela família e pela origem na roça. O papo com o GloboEsporte.com começou em novembro de 2013, pouco antes de Ceni desistir da aposentadoria e renovar seu contrato, fato que se repetiria em dezembro de 2014 e agosto de 2015. Mais de dois anos depois, com o fim da carreira do titular confirmado, Denis contou as novidades. Foram muitas. Nesse hiato, ganhou uma filha, uma cirurgia no ombro, tatuagens e mudou-se para sua primeira casa. Vida intensa.

Em mais de 100 minutos de conversas, ele contou sua vida e citou inúmeras vezes os nomes da mãe Hilda e do pai Miguel, de quem herdou a paixão pela música. Aposentado, Rogério Ceni já deixou claro que gostaria de ver Denis em seu lugar. Reserva há sete anos, ele só agradece. E se diz preparado.

– O Rogério é mito, é único, nunca ninguém vai ser igual a ele. Eu quero ser reconhecido como Denis. Não estou aqui brincando.

Realmente, Denis não brinca em serviço. Dá valor a cada centavo que ganhou ou deixou pelo caminho até se tornar profissional. A apresentação à bola se deu em Torrinha, de pouco mais de nove mil habitantes, similar à capacidade de um dos quatro setores de arquibancadas do Morumbi.

O garotinho de seis anos viu os outros de chuteira no pé. Quis uma igual, e ganhou do pai um Kichute preto, espécie de misto entre tênis e chuteira, febre no país por muito tempo após a Copa de 70, e que Denis só tirava do pé para tomar banho e dormir. Quando a família Matos se mudou para Brotas, cidade maior na região, ele entrou na escolinha. Como atacante. Até o dia em que, maliciosamente, se ofereceu para substituir o goleiro que faltou a um campeonato.

– Achei que jogar no gol seria uma teta. Fica parado, não corre… Mal sabia que depois eu seria um dos primeiros a chegar e dos últimos a sair.

Denis foi bem. Não sofreu gols. Quando se deu conta do ritmo intenso do treino da posição, quis voltar para o ataque. André, auxiliar do professor da escola, não permitiu. E Denis embarcou no sonho de ser jogador. Foram mais de dez testes. Mais de dez reprovações. A mais dolorosa delas na Portuguesa.

Denis Rogério Ceni treino São Paulo (Foto: site oficial do São Paulo FC)Denis passou os últimos sete anos na reserva de Rogério Ceni: de 2009 a 2015 (Foto: site oficial/São Paulo FC)

– Fiquei lá três dias, foi a primeira vez que passei mais tempo longe de casa. O treinador me mandou embora, disse para eu estudar, fazer outra coisa, porque goleiro eu nunca seria.

Por uma dessas ironias do destino, Denis estreou no São Paulo, em 2009, justamente contra a Lusa, quando Rogério se lesionou durante o jogo. Fechou o gol.

Tantos “nãos” fizeram seus pais pensarem que o futebol seria somente um hobby. À noite, o garoto estudava música. Nos dias sem aula, ajudava o pai a aplicar sinteco nas obras. Odiava quando tinha de raspar o rodapé de madeira e andar de joelhos por toda casa. Aos 13 anos, virou guia turístico de um hotel fazenda da região, sempre aos domingos. Demorava alguns minutos para ser levado a sério pelos hóspedes que chegavam e se deparavam com as explicações de voz fina e sotaque carregado.

O destino do menino caipira já havia sido traçado pelo pai: faculdade de música e o estrelato. Denis até fazia parte das bandas de duas duplas sertanejas da região: Biguá & Biracy e Paulo & Leandro. Até que um olheiro da Ponte Preta escolheu só ele entre 300 garotos numa peneira em Brotas. Depois de testes em Campinas, o veredito: peça transferência na escola e se apresente no dia 18 de fevereiro.

– O pai perguntou se eu queria mesmo, e eu disse: “músico eu posso ser a qualquer momento, mas jogador de futebol, se não for agora, não irei mais”. Ele disse para minha mãe que na cara dele eu não iria jogar o fato de não ter virado jogador. Ela aceitou, mas meio contrariada.

Lá se foi, então, o adolescente. Anunciou num show que não mais tocaria e partiu com uma mochila nas costas rumo ao mundo. Um mundo que demorou a se apresentar atraente. Foram três anos no alojamento da Ponte sem ganhar um tostão. Em época de vacas magras do clube, as vacas de Denis eram magérrimas.

– Até hoje eu evito comer carne moída, frango e salsicha. Porque era só o que tinha. As tias da cozinha, coitadas, já não sabiam mais o que fazer. Nós comíamos às seis da tarde, e depois só no café da manhã. Mas nunca reclamei para os meus pais. Eles me mandavam 50 reais por mês, e era o que eu tinha. Não saía do alojamento, não podia fazer nada.

Denis São Paulo (Foto: Site oficial do SPFC)Denis treina durante recuperação de lesão que o afastou dos gramados no primeiro semestre (Foto: Site oficial do SPFC)

Denis ainda não sabia se teria êxito no futebol. A grande maioria dos garotos de sua época não teve. Mas, fato, ele aprendeu a se virar. Nos fins de semana, para visitar os pais em Brotas, apelava para caronas, ao menos em parte do percurso. Caronas com desconhecidos, daquelas de fazer sinal na beira da estrada. Quando retornava, com a mala cheia de roupas lavadas pela mãe e dois pacotes de bolacha, caminhava da rodoviária até o estádio Moisés Lucarelli. Tudo para economizar os R$ 3 dos ônibus.

Como as partidas das categorias de base costumam acontecer aos sábados, o jovem descobriu que os domingos podiam continuar sendo uma fonte de renda, assim como na época em que guiava hóspedes pelo rio em Brotas. Primeiro se ofereceu para trabalhar de garçom num bufê. Ganhava R$ 40 por dia.

Em seguida, já com 17 anos, entregou marmitas para ter seus trocados. O futebol começava a lhe render frutos. Um deles foi uma proposta do Corinthians, no fim de 2004. Denis jura que queria continuar na Ponte, mas para isso pediu um contrato profissional. O clube, inicialmente, negou. O negócio com o time da capital melou, o goleiro voltou para casa e sua carreira esteve ameaçada. Até o dia em que ele e o pai voltaram a Campinas e selaram acordo: um vínculo de três anos com salário de 800 reais.

– Ganhava pra caramba (risos)! Consegui juntar dinheiro e comprar meu primeiro carro, um Gol 98 branco. Está em Brotas até hoje. Não vendo, não troco e não dou.

Denis ficou na Ponte até o fim de 2008. Chegou a proposta do São Paulo e, dessa vez, sem medo de se mudar para a “cidade grande”, ele aceitou. Até 2010, morou no CT da Barra Funda para fugir de aluguel. Até conhecer Carol. Com um mês de namoro, ele se mudou para a casa do sogro, onde morou por três anos até que seu apartamento, ao lado do CT, ficasse pronto. Hoje estão lá, Denis e Carol, e as filhinhas Mirella, de dois anos e sete meses, e Maria Rosa, de um ano e três meses.

Seu filho mais velho tem cinco anos e mora no Paraná, com a mãe. Denis também é pai de Andrew, fruto de um relacionamento casual, e cujo nome é uma homenagem a um primo do goleiro que morreu aos 11 anos de idade. Pai e filho não se veem com tanta frequência, mas se falam. E se amam.

As raízes caipiras não se perderam. Denis acorda cedo, é até alvo de piada dos parceiros na concentração. Anda de pés no chão e só ouve música sertaneja. Um momento de orgulho – e surpresa – foi entrar no quarto do roqueiro Rogério Ceni.

– Ele estava vendo DVD do Victor e Léo!

O candidato a sucessor do Mito tem outra característica típica do homem da roça: é ótimo observador. Após mirar por sete anos o goleiro titular, seus treinos, atitudes e palavras, Denis diz ter se tornado um novo profissional, sem receio de ser sincero e admitir tristeza e frustração quando Rogério renovou seu contrato, no fim de 2014.

Denis, do São Paulo (Foto: Marcelo Prado)Denis passou pela primeira cirurgia no ombro direito: recuperação foi mais rápida que o previsto (Foto: Marcelo Prado)

Crédulo de que, enfim, havia chegado sua hora, o reserva preparou um programa de exercícios e dieta para cumprir durante as férias. Consultou especialistas dentro e fora do clube, e o executou mesmo ciente de que a espera se estenderia. Como certas coisas parecem ser escritas por linhas tortas, logo no início do ano, Denis teve de operar o ombro direito após um trauma nos ligamentos.

– Seria muito mais difícil se eu tivesse me tornado titular. Seria muito ruim, abriria oportunidade para outros goleiros, como o Renan, que jogou bastante e teve uma sequência muito boa este ano. Acredito que teremos uma briga muito sadia no ano que vem – ressaltou ao citar Renan Ribeiro, que termina o ano como terceiro goleiro, mas foi titular elogiado em 2015 quando os outros estavam machucados.

Tatuagens goleiro Denis São Paulo (Foto: Alexandre Lozetti)Novas: tatuagens: Jesus Cristo e Nossa Senhora Desatadora dos Nós (Foto: Alexandre Lozetti)

Caipira não gosta muito de quatro paredes, de se sentir preso. A lesão foi um suplício para Denis. Vizinho do CT, ele chegava antes do horário às sessões de fisioterapia e estendia sua internação o máximo possível, até ser expulso pelos médicos, fato recorrente nos primeiros meses. Sem poder pegar a filha recém-nascida no colo, dar banho ou trocar fraldas, e sem suportar mais ver televisão, arrumou o que fazer: tatuagens.

Agora, em companhia ao nome da mulher e às iniciais dos pais, no braço direito, estão Jesus Cristo e Nossa Senhora Desatadora dos Nós, como diz a oração, “mãe que jamais deixa de vir em socorro a um filho aflito”. Devoto, Denis pretender completar o braço com outra imagem de Maria, mão de Jesus, e mais motivos religiosos. Por mera coincidência, todas no braço do lado operado, o direito.

O regresso ao time reservou mais surpresas. Contra o Cruzeiro, Denis bateu sua primeira falta. Nada, nenhum outro sinal, poderia representar maior comparação com Ceni do que isso. Justamente a comparação que todos entendem prejudicial a qualquer que se aventure sucessor. Denis fez companhia a Rogério nos treinos das cobranças, depois passou a ensaiar sozinho, escondido dos olhares da imprensa, se possível. No Mineirão, atendeu a um impulso e aos chamados dos companheiros.

– Foi improviso total. Eu estava capacitado porque treino normalmente, e vou continuar treinando porque gosto, mesmo que não bata nenhuma falta mais. Mas, se eu realmente assumir no ano que vem, meu objetivo não é cobrar faltas. Vou deixar para os outros jogadores. Eu preciso e quero me firmar como goleiro do São Paulo.

Nas outras vezes em que Rogério quase parou, a sucessão era certa e passava por Denis. Mas as profundas mudanças pelas quais o clube tem passado, e continuará passando, com nova diretoria, um treinador que chegará a qualquer instante, despertam dúvidas. Há uma certeza: o apoio de Ceni aos goleiros que já estão no São Paulo. Apoio do ídolo que o fã, privilegiado, agradece:

– Se eu for falar tudo que aprendi com o Rogério, essa entrevista não acaba hoje. Outro dia eu cheguei pra ele e falei: “Se você soubesse o tanto que gosto de você…”. Mas ele sabe. Aprendi muito. Vai ser difícil para qualquer substituto ter uma sombra como a dele, mas estou preparado. Sempre respeito muito sua carreira e sua trajetória. Consegui o que muitos fãs querem: estou há sete anos ao lado dele, convivo mais com o Rogério do que com minha família.

Chegou o momento do devoto Denis desatar os nós de ser o homem que vem depois do mito.

 

Fonte: Globo Esporte

 

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