Rogerio Ceni: “Sonho ganhar uma Libertadores no São Paulo como técnico”

Rogério Ceni comemora 500 dias de Fortaleza, completados na última quinta-feira, quando classificou a equipe para a terceira final sob seu comando, a da Copa do Nordeste. No São Paulo, entre mais de 25 anos como goleiro e menos de seis meses como técnico, foram 9.467 dias de trabalho. Neste domingo, pela primeira vez um jogo de futebol terá Ceni de um lado e o São Paulo de outro.

Vencedor de 16 títulos no Morumbi, e por isso considerado o maior jogador da história do Tricolor paulista, campeão brasileiro da Série B e estadual pelo Tricolor cearense, o que lhe rende o carimbo recente de ídolo, Ceni falou ao blog por telefone sobre a sensação de enfrentar o ex-time.

Vibrante em sua área técnica, e às vezes metros além dela, o técnico do Fortaleza respondeu se irá comemorar um gol contra o São Paulo:

– Minha identificação com o torcedor do São Paulo, com o clube, foi justamente pelo meu comportamento, por eu ser um cara que vivia e sentia no sangue cada gol, cada lance, cada defesa. Não posso mudar meu jeito de ser, esse sou eu. Durante aqueles 90 minutos tenho que fazer o melhor pelo Fortaleza, é minha obrigação profissional.

“Isso (comemorar um gol) não me afasta do torcedor são-paulino, pelo contrário, ele terá a certeza de que vivi aquilo de forma verdadeira. Ele me conhece, sabe como eu sou. Eu luto pelo melhor. Agora lutarei por outro tricolor.”
Rogério Ceni na final que deu o título cearense ao Fortaleza em 2019 — Foto: JL Rosa

Rogério Ceni na final que deu o título cearense ao Fortaleza em 2019 — Foto: JL Rosa

Veja a entrevista completa:

Como será estar do lado oposto ao do São Paulo depois de quase 26 anos de relação?
É inerente à profissão que escolhi. Algum dia iria acontecer. É um privilégio ter jogado tanto tempo no São Paulo e ter a chance de enfrentá-lo na Série A, num início de carreira como técnico. E é sempre especial receber o carinho do torcedor. É claro que eles torcerão pelo São Paulo, mas tenho certeza que com um carinho especial e boas lembranças. Eu deixei tudo que podia lá, fiz meu melhor, e agora recebo também o carinho do torcedor do Fortaleza. Estou há um ano e meio aqui com conquistas e chegando a finais, o torcedor é muito alegre e apaixonado. Acho que será uma grande festa. Eu espero sair vencedor, assim como o São Paulo. É uma equipe bem superior em estrutura, em quase tudo. Dessa vez terei que trabalhar contra esse favoritismo.

Apesar da diferença de tempo num clube e noutro, é possível estabelecer no Fortaleza um sentimento próximo àquele que tanto te ligou ao torcedor do São Paulo?
Eu procuro viver da mesma maneira que fiz no São Paulo. Não é simplesmente meu emprego. Eu faço meu melhor todos os dias e aqui há necessidade em todas as áreas. O Fortaleza passou muito tempo na Série C, sem cota de televisão, é preciso melhorar campos, fisioterapia, parte de musculação, aparelhagem. No São Paulo, você se preocupa menos com o entorno e pode se concentrar mais. Mas eu me sinto bem aqui, cara, converso bastante com o presidente e tenho liberdade para opinar, sugerir. Eles nem sempre têm condição de entregar, mas escutam, tentam. Eu tenho liberdade na montagem de treinamentos, na contratação de jogadores. É natural até pelo momento que vive o Fortaleza.

“Meu carinho pelo São Paulo é eterno, eu adoro o São Paulo, é o clube que me revelou para o futebol e me deu tudo. E eu entreguei tudo de volta. Acho que a relação foi intensa dos dois lados.”

Você e o presidente Leco nunca mais se falaram?
Nunca mais, não há necessidade. Isso (a demissão) faz parte. Ele preside o clube e continua lá até hoje. Vai acabar o mandato e seguir a vida. Eu sou extremamente feliz onde trabalho, tenho carinho pela instituição (São Paulo), pelo torcedor, pela história.

O torcedor atribui a ele sua demissão, principalmente pelas declarações dele nos meses seguintes, atribuindo a você a responsabilidade pelos maus resultados no início do Brasileirão. Você concorda?
Eu atribuo às vendas, e quem vende é quem tem a caneta. O grande motivo foram as vendas do Thiago Mendes, do Luiz Araújo, do Lyanco, do Maicon, do David Neres, antes mesmo de eu assumir. E houve a lesão do Wellington Nem, perdi toda a velocidade na frente. E um time sem velocidade no ataque não vai a lugar algum. Eu imagino que (as declarações de Leco) sejam uma questão de autodefesa, não vale a pena falar nesse sentido. Eu nunca toquei nesse assunto, cada um vai escrever sua história.

Rogério Ceni em seu tempo de técnico do São Paulo — Foto: Erico Leonan / site oficial do SPFC

Rogério Ceni em seu tempo de técnico do São Paulo — Foto: Erico Leonan / site oficial do SPFC

Desde que você deixou o São Paulo, em julho de 2017, o clube já teve outros cinco técnicos, incluindo o Vagner Mancini, interino. E apenas dois jogadores que estiveram contigo continuam no grupo, o Jucilei e o Brenner. O que isso significa?
Isso é uma coisa assustadora até no futebol brasileiro. Em menos de dois anos, um elenco inteiro foi trocado. Mais de 28 atletas que não existem mais, desapareceram. Nem o Fortaleza, que tem suas limitações, teve uma troca tão grande de um ano para o outro.

Como vê o time atual nas mãos do Cuca?
O Cuca é um grande montador de times. Ele teve o auxílio do (Vagner) Mancini e agora notamos que já começa a mexer por suas ideias, com jogadores que não foram utilizados antes. As contratações influem no estilo de jogo e acho os meninos fora de série. Espero que o São Paulo os segure dessa vez.

“O Antony será a revelação do Campeonato Brasileiro, não tenho dúvida alguma, enquanto o grande jogador talvez seja o Everton, do Grêmio.”

Tem o Liziero, o Luan é muito bom jogador, gosto muito do Igor Gomes. É incrível como o São Paulo consegue produzir. Em 2017 puxamos toda uma nova safra e já foi praticamente todo mundo embora.

“Vejo o São Paulo brigando pelo título. A maioria das pessoas centraliza em Flamengo, Palmeiras, Grêmio e Cruzeiro, eu incluo mais um ou dois times, inclusive o São Paulo.”

Cuca até hoje tem que responder sobre um desentendimento entre vocês. Há sequelas?
Aconteceu uma discussão em 2004 com o preparador físico (Omar Feitosa) e o Cuca ficou numa saia-justa. Não tenho nada contra ele, o acho ótimo treinador e aprendi bastante com ele naquela oportunidade. Já faz 15 anos! E nos enfrentamos em 2017 (o São Paulo de Ceni bateu o Palmeiras de Cuca por 2 a 0). Agora há uma discrepância maior entre os times, mas vamos encarar. O São Paulo precisa dos pontos para se manter no G-4 e nós para sair do Z-4.

Em 2017, você subiu o Militão e previu que ele não ficaria muito tempo no São Paulo. Ele acabou saindo um ano depois.
Militão era um menino que só não subi num primeiro momento porque achei um pouco verde. Meses depois, quando pessoas queriam contratar jogadores que não tinham nível para o São Paulo, eu puxei para ser volante ou um zagueiro de boa saída. Ele fez um jogo como terceiro zagueiro pela direita, mas era um cara de muita versatilidade. Pode ser zagueiro, lateral, volante, tem biotipo muito bom, jogo aéreo, não é lento, boa relação com a bola. É um atleta excepcional. É uma pena que o São Paulo não consiga unir jogadores de diferentes gerações.

O torcedor do São Paulo tem certeza de que você voltará ao clube um dia. Você também?
Certeza eu não tenho, mas seria um prazer muito grande. Quando eu fui campeão da Libertadores e mundial em 1993, na reserva, tive o sonho de ser novamente, jogando. Demorei 12 anos para realizar.

“Meu sonho agora é ganhar uma Libertadores no São Paulo também como treinador. Mesmo que demore mais de uma década, se eu ainda estiver trabalhando, que pelo menos eu possa tentar realizar.”
Rogério Ceni e Lugano carregam taça da Libertadores em 2005 — Foto: Alex Silva/Estadão Conteúdo

Rogério Ceni e Lugano carregam taça da Libertadores em 2005 — Foto: Alex Silva/Estadão Conteúdo

Falando sobre o Fortaleza, como foi habituar um clube que estava há tanto tempo numa fase ruim a disputas frequentes de decisões?
O mais difícil é incutir na mente das pessoas que não se pode deixar passar oportunidades. Nosso orçamento não estava entre os cinco maiores da Série B, mas conseguimos um bom início e não podíamos não tirar proveito para brigar pelo título. Aqui, a cada ano se remonta um time. Tivemos umas 20 contratações, ainda estamos tendo, e é um time completamente diferente do de 2018. Com características distintas, mas a mentalidade não mudou: é preciso vencer, o que marca são os títulos. Meu trabalho na parte motivacional é mostrar que é necessário entregar o melhor dentro das condições oferecidas. Esse é o segredo.

Você parece bem entrosado com o torcedor, identificado com a paixão deles.

“É o que pode fazer diferença quando jogamos contra uma equipe como o São Paulo e mais sete ou oito do Brasil, que têm uma diferença grande entre os atletas e também com treinadores muito mais experientes do que eu. O grande combustível é o torcedor. Quando vêm 30, 40, 50 mil torcedores ao Castelão, o ambiente é outro, é impossível que o jogador não faça seu melhor.”

O cumprimento da parte tática tem sido bem feito, dificultamos o máximo o adversário e exploramos o que temos de melhor. Contra o Santa Cruz, não fizemos um bom primeiro tempo, mas a torcida aplaudiu. E depois que fizemos o gol, só quem vem ao Castelão pode explicar a sensação. Os mosaicos, as bandeiras, é um povo muito alegre, que também cobra muito e espera vencer, nem sempre compreende as diferenças de investimento.

E o gol contra o Santa Cruz foi do Romarinho, que você teve de defender das vaias durante um jogo, gesticulando para a torcida. É prazeroso ao técnico quando o jogador justifica gestos como esse?
Temos muita dificuldade em formar atletas nas categorias de base. Precisamos evoluir em gramados, captação, estrutura. O Romarinho veio do Globo-RN, da Série C. Não são valores altos, mas é um investimento. Taticamente, ele é extremamente importante. Dedicado, acompanha lateral, faz o terceiro homem de meio, joga por fora, por dentro. Ainda toma decisões erradas, tem só 25 anos. Talvez não tenha tido a formação necessária, então se precipita, às vezes segura demais a bola, em outras quer tocar de primeira, mas tem muita força física e trabalha muito bem as finalizações. Falta um pouco de calma, de experiência. O gol foi um grande presente para ele e para nós, que perseveramos com ele. Ele já entrou tantas vezes vaiado, agora saiu aplaudido.

Ceni comemora título do Fortaleza — Foto: Kid Júnior / Diário do Nordeste

Ceni comemora título do Fortaleza — Foto: Kid Júnior / Diário do Nordeste

Melhorar jogadores é uma necessidade num time sem poderio financeiro. Você vê esse trabalho sendo feito no Fortaleza?

“Nós gostamos muito de jogadores com fome, com vontade de vencer porque aqui os 10 marcam e os 11 jogam, desde o goleiro. Então, prefiro que tenha limitações, mas também alma, coração, que corra.”

Nosso time trabalha em 111 metros por minuto de giro de jogo. Contra o Athletico-PR foram 115. O Araruna correu 119 metros por minuto nesse jogo. Os jogadores do Liverpool trabalham em 120 por minuto. É de um significado fora de série. E temos Carlinhos, Roger Carvalho e Paulo Roberto com 32 anos, Wellington Paulista de 36, misturados a outros mais jovens. A rotação é alta numa temperatura de 30 graus. Temos que ter um diferencial, tentar se impor na parte tática e trabalhar muito priorizando a velocidade.

Você visitou Klopp e Pochettino em 2016, quando se preparava para ser treinador. Quando o Brasil poderá ter uma final como a da Champions League, entre dois técnicos que estão há quatro e cinco anos no cargo sem ganhar títulos?
Só quando um clube tiver dono. Liverpool e Tottenham são organizadíssimos. Eu fui muito bem recebido no Tottenham, passamos mais de seis horas conversando, vendo a estrutura, eles até pediram opiniões sobre treinamentos de goleiros. Os campos são um espetáculo, foi uma experiência incrível. É um time emergente e pode-se aliar esses anos de força à presença do Pochettino. O Liverpool eu gosto muito de ver jogar, com intensidade muito alta. Gosto da maneira como o Klopp põe o time para frente, com velocidade. É uma final inesperada, mas extremamente merecida para esses dois profissionais. No Brasil não haveria uma final dessa entre técnicos há quatro e cinco anos sem ganhar. Por isso vivemos esse futebol e a Inglaterra um momento fantástico, também com Arsenal e Chelsea na final da Liga Europa.

Não posso dizer quem é o melhor, mas há poucos ingleses trabalhando em times grandes. O trabalho do Klopp é impressionante, até pela figura humana dele. É ótimo treinador. O Pochettino não pôde contratar para a temporada. E, mesmo não estando na final, há o Guardiola e muita gente boa. O Simeone há oito anos no Atlético de Madrid, o Allegri na Juventus. É difícil apontar o melhor. Pelo estilo de jogo do Fortaleza, me identifico mais com o Klopp neste momento. Pelo amor de Deus, sem comparações, mas no ano passado tínhamos mais posse de bola. Chegávamos a 600 passes trocados num jogo. Agora trabalhamos entre 250 e 300, com mais velocidade.

Quando você encerrou a carreira de jogador, disse que gostaria de ser dono do São Paulo. Ainda tem essa vontade?
Eu gostaria. Pena que não tenho a grana (risos), mas o futuro dos clubes grandes é esse. Administrações privadas são o único movimento capaz de mudar o rumo porque ninguém faria loucura com o próprio dinheiro. Com o dos outros é fácil. Eu consegui fazer 500 dias ontem no Fortaleza, é uma marca impressionante para um clube onde é natural que haja trocas de treinadores.

Fonte: Globo Esporte

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