O coração do São Paulo parou

Meu tio passou 15 anos em coma, de 2005 a 2020, depois de uma parada cardíaca; seu coração parou de bater. Convivi, portanto, com o sentimento de ver alguém que eu amo vivendo e não vivendo. Os médicos diziam que meu tio estava em estado vegetativo persistente, que poderia acordar a qualquer momento – o que infelizmente não aconteceu – e que não tinha como saber se ele ainda estava ali, afinal ele esboçava algumas reações e nunca precisou respirar por aparelhos. Faço esse preâmbulo absolutamente pessoal para dizer que outro amor passa por situação análoga.

O São Paulo Futebol Clube está em coma. Adormece em sono profundo há anos e anos, mas ainda está ali, esboçando algumas reações vez ou outra. É um clube dormente na modernização de sua gestão, do seu Conselho e no caminho da democracia. É um clube inerte em novas ideias, no relacionamento com seus ídolos e na atenção ao seu papel como agente de mobilização social: é uma instituição omissa em pautas relevantes da sociedade, como a não-menção ao golpe de 1964 no último 31 de março ou a manifestação tímida no mês da luta LGBTQUIA+. Por quê? Porque quem guarda seu sono é uma gente reacionária, entre conselheiros e adjuntos abnegados que acham que o mundo se limita ao Morumbi. Ou à Faria Lima.

É normal que uma pessoa de 92 anos se despeça de suas funções cognitivas, pela idade. Mas é anormal que um clube de futebol tão jovem, aos 92 anos – o São Paulo é, entre os grandes, além do primeiro, o clube mais novo – abandone sua própria consciência por uma sequência de decisões tão voluntárias quanto inadmissíveis. Ao contrário do meu tio, o que aconteceu com o São Paulo não foi uma fatalidade. Tem (e teve) método: dirigentes que gostavam do clube, mas que preferiam o próprio bolso, manutenção de uma estrutura arcaica, cortinas de fumaça e um brutal distanciamento de seus torcedores.

Em algum lugar, o São Paulo flutua, sendo a carcaça do clube que já foi: vencedor, plural, de vanguarda. O tricolor existe, mas não existe. E como Clube da Fé, vai ter que investir e apostar nela como nunca se quiser sair do estado vegetativo persistente. A sorte do clube é que os seus torcedores são mais persistentes: se tem algum aspecto positivo dessa fase difícil que o clube atravessa, é a prova cabal de que o são-paulino é incondicionalmente leal. Modinha é o caralho, nós somos aqueles que nunca saíram de perto do clube que teima em repousar. Enquanto ainda tiver o Morumbi, enquanto ainda tocar o hino, enquanto ainda tivermos memórias, ficaremos. Vigilantes. Há barulhos que acordam o sono mais profundo: cornetas, denúncias, hashtags e rojões. Se o São Paulo escolheu dormir, o são-paulino decidiu ficar acordado.

Não fechou – e nem fechará – os olhos para a bandalheira, a troca de favores e a incompetência permanente que existe da porta pra dentro. A coletiva de ontem do Rogério escancarando o descaso de diversos departamentos e a letargia da estrutura como um todo foi um gesto sem paralelos. E só ele, pela sua trajetória e personalidade, seria capaz de algo desse tamanho. Não que a gente já não soubesse da podridão, mas ouvir isso do maior jogador da nossa história tem ressonância diferente; não houve um são-paulino ou são-paulina que não tenha ficado atônito. Pupilas dilatadas diante de tanta escuridão. Como pode uma piscina não ter água? Como pode um funcionário ir embora pra casa às 13h45? Onde o São Paulo foi parar? A causa do coma tá aí, mas os sintomas também. O repouso tricolor fica cada vez mais severo porque ninguém ali dentro está disposto a despertar.

Até ontem.

Rogério e São Paulo se mimetizaram em dado momento, mas isso quando o clube ainda caminhava pelas próprias pernas. Vívido. Só estando alerta é possível conquistar o Brasil, a América e o mundo, aumentar o número de torcedores, e virar referência para o resto do continente. O filme Lady Bird diz que amor e atenção são a mesma coisa e foi-se o tempo em que o São Paulo esteve atento consigo mesmo; o clube deixou de se amar há muito. E a renúncia da sua própria identidade só pode levar ao fim da sua própria existência. Quando isso acontece, a única alternativa que resta é reviver as lembranças. As suas glórias vêm do passado, não? Saramago escreveu que somos a memória que temos, e foi isso, e só isso, que manteve o São Paulo respirando: foi por causa das nossas vivências que continuamos a lotar o Morumbi, recepcionamos o ônibus com fogos e salvamos o clube do rebaixamento. Em campo. Fora dele, já despencamos para uma apatia sem divisão.

Não sei se meu tio sonhava. Não sei se tudo para ele foi um enorme sonho que nunca acabou. Mas sei que o São Paulo vive em um pesadelo que ele mesmo se colocou, ainda que o são-paulino sonhe acordado. Sonhamos que o gol de ontem do Marquinhos, chorado e sofrido, tenha sido um ponto de virada Sonhamos que Luan e Luciano voltem logo de lesão. Sonhamos que Jandrei finalmente dê segurança à nossa meta. Sonhamos que Calleri marque gols salvadores. Sonhamos com vitórias em clássicos, viradas improváveis e títulos maiúsculos. Sonhamos que o São Paulo, enquanto dorme, sonhe com tudo isso também.

Porque como canta a Nação Zumbi, Não sei se sonhava o meu sonho / Ou se o sonho que eu sonhava era seu. É a vez de outra nação pegar esses versos emprestados.

A coletiva do nosso treinador ontem foi um choque de realidade. Então, sendo o São Paulo um clube em coma, Rogério – com seu coração são-paulino que nunca parou de bater – pode ser o nosso desfibrilador.

Lucca Bopp é escritor e redator publicitário

Blog do Juca – Uol

11 comentários em “O coração do São Paulo parou

  1. Bom Dia….. Ditadura de 1964 kkk kkk essa narrativa já deu no saco…. Eu vivi esse período fiz e ainda sou parte viva da história essa narrativa massacrante para doutrinar os mais jovens cansou já , pois essa época foi ótima de se viver e tenham certeza que essa galerinha que reclama dessa época ou porque queria implantar aqui um regime de esquerda ou perdeu privilégios. Quanto ao pobre SPFC seus dirigentes implataram a mesma filosofia de se perpetuar no poder e se beneficiar da grana via gordas comissões como o PT …..
    Pobre SPFC

    • Chamam o regime de exceção que era uma aclamação popular de ditadura, mas queriam impor a tal ditadura do proletariado, aliás usar eles para benesses dos comunistas chefes…

      Mais à frente os militares cagaram e deram essa nação de mão beijada para os comunistas, vide a famigerada constituição brasileira…

      Temos muito trabalho a fazer, mas é bom ver que as pessoas sabem a verdade, pelo menos uma parte delas.

      Pelo visto estava certo, cagaram esquerdopatices no texto… sabia era só ver a fonte!

  2. Ao ler a fonte, sim na maioria das vezes vejo primeiro a fonte para saber se vale a pena o tempo gasto para leitura, preferi não ler o texto, certeza que terá lacração esquerdopata.

    Boa sorte com a leitura quem tiver tempo e coragem.

  3. Mais real do que a realidade. O retorno da Instituição aos seus dias de glória pode ser expressado pela letra de um célebre samba-enredo: “sonhei… que estava sonhando um sonho sonhado, um sonho de um sonho, magnetizado.”

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